Quando eu tinha 6 anos, descobri que eu era diferente. Faltava algo em mim que todas as pessoas à minha volta tinham, e eu me sentia muito mal por isso. Era uma coisa tão trivial, tão ordinária, mas que parecia ser muito importante, porque não havia um dia sequer que eu não percebesse que era incompleto. Eu não sentia cheiro. E nunca senti.
Quando o bolo ficava pronto, quando o bebê saia do banho, quando a chuva tocava a grama ou quando uma bela menina passava, ou a primavera chegava, havia sempre alguém celebrando o cheiro de todas essas coisas. Eu, alheio a tanta alegria, fingia compartilhar, mas morria um pouco, a cada dia, sentindo falta de algo que nem conhecia.
Foram anos escondendo para o mundo minha verdade. Quando perguntavam, “estás sentindo cheiro de gás?”, ou “parece que há algo queimando no forno, não?”, minha resposta era sempre um eficiente e verdadeiro “não”. A pessoa então se sentia até bem, por ter um faro tão aguçado, já que eu, ali do lado, não percebia tal fragrância no ar. Descobri logo que ninguém se importava muito com quem não sentia cheiro, porque a conversa sempre terminava ali. Mas quando outra pessoa respondia positivamente sobre estar sentindo cheiro de qualquer coisa, as conversas duravam séculos. E eu lá, além de não sentir cheiro, ficava mudo.
Tudo mudou numa semana chuvosa de dezembro. Raios e trovões balançavam a cidade toda e faltou luz em todos os prédios da região por dias seguidos. Algum tempo depois, vejo uma aglomeração estranha no meu andar. Estavam lá o síndico, o zelador e meia dúzia de vizinhos que falavam ao mesmo tempo no hall estreito, em frente à porta do apartamento que fica ao lado do meu. Estavam decidindo se arrombariam a porta ou não. Não havia ninguém em casa e eles só voltariam dali a alguns meses. “Não aguento mais”, falou a vizinha do andar de cima. “É porque não é você que tem que limpar esse hall todos os dias”, replicou o zelador. “E você, como pode morar aqui do lado?”, perguntou o síndico.
Ué, aquela gente nunca tinha me feito mal. Qual o problema de morar ali? O prédio era uma espelunca, mas o preço era honesto. Apenas dei ombros, sem saber o que dizer.
Foi então que o filho da vizinha resolveu falar as palavras mágicas: “parece que tem um rato morto, dentro de uma fralda com cocô de bebê, misturado com peixe e camarão apodrecidos lá dentro. Pelo menos é esse o cheiro que sinto”.
Curioso. Estavam todos se desfazendo. No momento em que o zelador abriu a porta com a chave-mestra, todos fizeram a mesma cara azeda. Três daquele grupo não aguentaram e passaram mal. Uma senhora mais velha bateu em retirada e ninguém teve coragem de dar um passo em direção à soleira.
Eu? Eu estava impávido. Tive vontade de rir, mas compadeci daqueles pobres mortais. Entrei pela casa do meu vizinho como um gigante e vasculhei por todos os cantos até encontrar a geladeira fechada, mas desligada. Dalí escorria um líquido estranho e viscoso. A trupe toda via, da porta, incrédula, minha passagem para dentro daquele mundo podre. Quando eu abri a porta da geladeira, mais dois daqueles curiosos caíram de joelhos, enjoados. Os mais fortes fecharam os narizes e evitavam respirar pela boca, tentando ver onde aquilo ia dar.
Encontrei sacos de lixo pretos no armário da cozinha e, calmamente, retirei todos os restos de alimentos que estavam descongelados na geladeira. Foram 4 sacos grandes de lixo. Eu não tinha ideia, até então, do meu feito. Descobri que eu tinha poderes mágicos naquele dia e meu nome passou a ser falado por todo o bairro, como uma lenda urbana. O homem que era capaz de suportar os cheiros mais horrendos do universo morava ali, num prédio marrom de uma rua pacata de Brasília.
…
Outro dia, na padaria, saia uma nova fornada de pães quentinhos e uma vizinha comentou. “Nossa, que cheiro maravilhoso, não acha?”. Apenas acenei com a cabeça, sem falar nenhuma palavra. Já ia entristecendo quando um dos faxineiros passou com um balde e uma vassoura na mão, resmungando: “queria ser aquele homem que suporta qualquer odor. Ninguém merece limpar esse banheiro”. Respirei fundo. Enchi o peito de orgulho e saí da fila para ajudar o homem. O pão cheiroso poderia ficar para depois. Eu tinha uma missão a cumprir.
Exercício produzido para o Laboratório de Autoria, do professor, doutor, escritor, ilustrador, contador de histórias e maravilhoso Celso Sisto. Ao longo de todo o primeiro semestre vou compartilhar alguns desses exercícios aqui no blog :)